Como a estrutura para crimes do jogo do bicho foi também usada para matar Marielle

“Não que a contravenção tenha mandado matar a Marielle, mas a contravenção criou um sistema que facilitou a morte da Marielle.” A afirmação partiu do miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, em depoimento à Polícia Federal (PF) em 2019, corroborada pelo relatório final da PF sobre o caso, que elenca ligações com crimes vinculados ao jogo do bicho, que esbarram de alguma forma à execução da parlamentar em 2018. Em comum, a estrutura com matadores de aluguel, assim como a garantia de impunidade, com inefetivas investigações, justificadas por acertos de dinheiro para que não fossem para a frente.

No depoimento de Curicica, ele mencionou ainda a investigação das mortes do PM Geraldo Antonio Pereira, o Pereira — apontado como sócio do bicheiro Rogério de Andrade, sobrinho de Castor de Andrade — em 2016 e de Haylton Escafura, filho de bicheiro José Escafura, o Piruinha, que foi morto em 2017 ao lado da companheira, uma policial militar.

“Não havia como investigar porque, se não, ia chegar na contravenção… porque se chegar no escritório do crime, vai chegar no Rogério de Andrade, vai chegar no Anísio (Abrahão David)”, observou Curicica na ocasião.

À frente dos casos, o delegado Brenno Carnevale, responsável por investigar o assassinato de agentes conta ter sofrido “tentativa de embaraços” dentro da Delegacia de Homicídios (DH). Atualmente secretário municipal de Ordem Pública, ele relata que, à época, foi retirado da investigação do assassinato de Escafura, e que, no caso de Pereira, “o inquérito simplesmente sumiu e desapareceu” da DH. Em entrevista à Globonews na última segunda-feira, Brenno disse ter enfrentado problemas também na investigação da morte em 2016 de Marcos Vieira de Souza, o Falcon, então presidente da Portela:

— O objeto da minha denúncia em 2019 (ao MPRJ) foi justamente esse modus operandi de tentar controlar determinadas investigações, cujos panos de fundo eram o jogo do bicho, grupos de extermínio relacionados ao Escritório do Crime e atividades milicianas.

Rivaldo Barbosa, então chefe de Polícia Civil, é apontado pela PF como alguém que dava “permissividade” às ações de paramilitares. Sua gestão, destaca o relatório, foi marcada pela “subserviência da Divisão (de Homicídios) às atrocidades decorrentes das disputas territoriais do jogo do bicho e máquinas caça-níquel”.

No último domingo, o deputado federal Chiquinho Brazão e seu irmão, Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ), foram presos preventivamente, assim como Rivaldo. A determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF, se baseou no documento da PF, que afirma que os Brazão teriam contratado não só a execução de Marielle, serviço para o qual foram elencados o ex-PM Ronnie Lessa e seu comparsa Edmilson da Silva Oliveira, o Macalé, assassinado em 2021, mas ainda a “garantia prévia da impunidade” por parte de quem deveria investigá-los.

Lessa revelou ter realizado “diligências” um mês antes da morte da vereadora, que tinham, na verdade, dois alvos: além de Marielle, quem também estava na mira era Regina Celi, então presidente do Salgueiro. Uma dessas ações teria ocorrido na Quarta-feira de Cinzas daquele ano, data da apuração das escolas de samba, em que Lessa contou estar acompanhado de Maxwell Simões Correa, o Suel — que viria a ser preso em julho de 2023 — e que “permaneceu aguardando tal evento, mas perdeu o alvo (Regina) após o seu encerramento”.

Além da campana ser a mesma, até o carro usado na emboscada, um Cobalt prata, seria o mesmo. A morte de Regina, que não foi concretizada, estaria ligada a uma disputa pela sucessão na escola e teria sido encomendada pelo contraventor Bernardo Bello, ex-marido de Tamara Garcia, herdeira de Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, patrono do Salgueiro assassinado em 2004. Ronnie Lessa contou ter sido acionado para o serviço através de Macalé, que recebia de Bello R$ 50 mil mensais e que “não tinha como negar um pedido seu”.

Ronnie Lessa ainda ponderou, de acordo com a PF, que o crime contra Marielle “era mais rentável”, mas que teria sido convencido por Macalé a vitimar Regina: o valor passaria a ser dividido com Lessa e Suel.

No cargo desde 2008, em 2018 Regina Celi tentava a reeleição. Seu então concorrente na disputa, André Vaz “protestou veementemente”, sob a alegação de que ela estaria concorrendo pelo terceiro pleito, o que seria vedado pelo estatuto da escola. Regina, que saiu vencedora da eleição — apuração em que teve o contraventor Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, representante da cúpula, ao seu lado — foi alvo de uma ação da Justiça em seguida: ela foi afastada e, na nova eleição, Vaz, o atual presidente, venceu. Regina representaria os interesses de Shanna Garcia, irmã gêmea de Tamara, de quem é rival. Já Vaz, os de Bello.

O clã Garcia sofreu assassinatos nos últimos anos, como os de Waldomiro Paes Garcia Junior, o Mirinho, irmão de Shanna e Tamara, morto em 2017; o de Alcebiades Paes Garcia, o Bid, irmão de Maninho (2020); ou o de José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, marido de Shanna, morto em um centro espírita em 2011.

Segundo sentença de 2023 do juiz Bruno Rulière, da 1ª Vara Criminal Especializada em Organização Criminosa da Comarca da Capital, em face dos membros do Escritório do Crime, a morte de Zé Personal teria ocorrido depois de ele “ter demitido o ex-capitão Adriano da Nóbrega e este ter se aproximado de Bernardo Bello”.

A PF conclui que Lessa, ao aceitar matar Marielle, estaria focado numa recompensa: ele receberia dos irmãos Brazão uma grande extensão de terras. O maior atrativo, na opinião do ex-PM, seria a de explorar serviços de gatonet, gás e transporte alternativo nesse lugar.

O preâmbulo desse negócio é que, anteriormente, Lessa teria deixado um “próspero negócio” na comunidade de Rio das Pedras, por determinação do capitão Adriano da Nóbrega, matador de aluguel do Escritório do Crime, morto em 2020, durante ação da polícia na Bahia. Portanto, as terras que receberia dos Brazão seriam “a oportunidade” de ter um lugar em que pudesse “dar as cartas”.

No que chamou de “sanha” para alcançar o patamar do capitão Adriano, a PF conclui que Lessa ainda teria se aproximado de Rogério Andrade na “tentativa de se consolidar no cenário da contravenção carioca”. Lessa, portanto, “não se reportava a somente um senhorio”, o que também se aplicava a Macalé.

Lessa se tornou sócio do patrono da Mocidade e de Gustavo de Andrade, filho de Rogério preso em 2022, em um bingo na Barra da Tijuca. Rogério chegou a ser apontado como mandante do assassinato de Marielle na delação premiada de Alexander de Moraes Rodrigues, o Russo, que foi rescindida. “Inexistem, neste momento investigativo, elementos aptos a atribuir a autoria ou participação” de Rogério, ressalva o relatório.

A conclusão da investigação da PF é a de que, antes, os assassinatos eram restritos “aos efeitos colaterais dos diversos conflitos paralelos que ocorrem no Rio de Janeiro”, como tráfico, milícia, disputa entre contraventores e por máquinas caça-níqueis. “Entretanto, o presente caso revela que as desavenças regulares do jogo político transbordaram o tabuleiro da democracia e descambaram para essa mesma vala de sangue e corrupção”, afirma o texto, em referência à morte de Marielle.

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