
A voz delicada e feminina de Lara Mara Rodrigues da Costa, em entrevista ao GLOBO, não lembra em nada a da mulher que comanda o carnaval da Unidos de Padre Miguel (UPM). Mas ela garante: quem dá o grito potente à frente da “boi vermelho”, como a escola é conhecida na Vila Vintém, comunidade de Padre Miguel, na Zona Oeste do Rio, é ela — algo facilmente comprovado em vídeos postados em suas redes sociais. Lara Mara admite que até ela se assusta com sua transformação ao soltar o berro que virou bordão:
— Vamos botar para foder, porra!
A mais jovem diretora de escola de samba estreou no desfile do Grupo Especial aos 20 anos, sendo a primeira a entrar na Sapucaí na noite deste domingo (02/03). Estudante do quarto ano de Direito, Lara Mara trocou o vermelho pelo branco, em homenagem a seus orixás: Oxalá e Iemanjá.
— É uma nova proposta. Uma roupa que representa algo que eu quero trazer para o desfile — disse Lara Mara, antes de cruzar a Sapucaí.
Sua maior paixão, segundo ela, é a escola da Vila Vintém. A relação começou cedo: Lara Mara cresceu dentro da quadra da vermelha e branco. Seu pai, Cícero Costa, era um dos dirigentes da agremiação quando ela nasceu.
— Há fotos minhas no colo da minha mãe, com dois meses de vida, na UPM. Fui crescendo lá dentro da quadra. Sempre fui muito curiosa. Meu pai me levava e eu queria saber de tudo. Queria ver o carnavalesco desenhando, entender a história do enredo, a cultura africana. Eu perguntava tudo. “O que é isso? Para que serve isso?”. Eu me apaixonei por aquele mundo. Eu era uma criança chata — brincou.
Ela passou pela ala das crianças, cogitou ser sambista e até porta-bandeira, mas foi nos bastidores que encontrou sua vocação. Enquanto muitos jovens sonham em tirar a carteira de habilitação, ela queria dirigir a escola.
— Aos 17 anos, comecei a tomar decisões, mesmo sem ter assumido oficialmente o cargo de diretora. Meu pai me disse que, quando eu fizesse 18, assumiria. Achei que fosse brincadeira, mas não era — contou ela, que até hoje não tem habilitação.
Na Avenida, na hora de escolher o figurino, Lara trocou as cores da escola pelo dourado, em homenagem a Oxum e à avó, Deise Mara, mulher de Celso Luís Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém, ex-chefe do tráfico e personalidade na escola, que cumpriu pena e está em liberdade condicional.
— Eu sei das coisas que ele fez, não sou hipócrita. Mas, graças a Deus, minha relação com ele sempre foi de avô e neta. Ele é supercarinhoso e atencioso comigo. Até se preocupa com minha exposição no carnaval. Sempre fala: “Minha filha, você quer ser advogada e tal”. Mas ele nunca interferiu nas minhas decisões — conta. — Infelizmente, as pessoas me vinculam a ele, e eu acabo sofrendo por algo que não tem nada a ver comigo.
O grito que virou bordão
O bordão surgiu em um momento de tensão na escola. Lara Mara, conhecida por perseguir a perfeição nas apresentações, estava contrariada com algo e, no calor do momento, soltou o grito.
— Eu nem sei o que acontece. Esse é o poder que o carnaval tem de transformar a gente. No dia a dia, sou tímida, não falo assim. Mas nessa época do ano, eu viro essa potência, me transformo. Quando vi o primeiro vídeo com o grito de guerra, fiquei assustada. Mas aí o pessoal gostou e passou a me cobrar — relembrou.
Outra marca registrada da diretora é a vaidade. Vestidos, penteados elaborados e maquiagem fazem parte da sua identidade. Com isso, suas postagens nas redes sociais passaram a atrair seguidores e a influenciar no segmento da beleza. Mas, quando o assunto é a escola, Lara Mara é firme em suas decisões — principalmente quando precisa dizer “não”.
— Meu cargo, geralmente, é ocupado por homens. Mas eu não preciso perder minha feminilidade para me encaixar nesse mundo. Uso vestido, maquiagem, penteado… Muitas mulheres em cargos como o meu se sentem oprimidas pelo machismo e, até, sofrem assédio. Eu penso diferente. Independente de como a mulher se veste ou se porta, ela merece respeito. A gente não precisa parecer “moleque macho” para ocupar um cargo que dizem ser de homem. Porque ninguém disse que é um cargo de homem — analisou.
‘Sempre foi líder’
Fotógrafo da Unidos de Padre Miguel há 12 anos, Diego Mendes conhece Lara Mara desde os oito anos. Ele lembra que, ainda criança, ela já demonstrava liderança.
— Ela se posiciona sobre tudo. É impressionante! O poder de decisão dela vai de coisas simples às mais complexas. Ela tem muita maturidade — comentou.
Foi ela quem bateu o martelo para a escolha do enredo “Egbé Iyá Nassô”. A história resgata a trajetória da princesa africana Iyá Nassô, que veio ao Brasil como escravizada e lutou contra a perseguição religiosa, fundando a Casa Branca do Engenho Velho, o primeiro terreiro de candomblé do país, na Bahia.
— A comunidade pediu muito para unir a cultura africana e o poder matriarcal no enredo. Essa junção representa a Vila Vintém, onde há muitas mulheres fortes — explica Lara.
O amor pela UPM
A paixão pela escola está marcada na pele: Lara Mara tatuou o símbolo da Unidos de Padre Miguel na panturrilha direita, junto à frase “O samba é o remédio da alma”.
Ela comanda uma escola com 3 mil componentes e garante conhecer cada um pelo nome. “É uma família”, define.
Após 52 anos, a UPM volta ao Grupo Especial. Até o ano passado, a escola disputava a Série Ouro, onde ficou em segundo lugar cinco vezes, batendo na trave do acesso. Em uma das apurações, Lara Mara lembra que mandou todos saírem do Sambódromo, por entender que o título deveria ser da Unidos de Padre Miguel.
A escola também se diferencia por não ter uma rainha de bateria famosa. E Lara pretende manter assim:
— Eu nunca vou colocar uma famosa à frente da nossa bateria. Esse lugar é da mulher da Vila Vintém. Eu sou muito de opinião e sempre soube me impor. Mas também respeito as outras pessoas, né?
“Não sou meu avô”
Perguntada se sua postura de comando tem influência do avô, Celso Luís Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém — ex-chefe do tráfico, que cumpriu pena e está em liberdade condicional —, Lara Mara responde sem rodeios:
— Eu sei das coisas que ele fez, não sou hipócrita. Mas, graças a Deus, minha relação com ele sempre foi de avô e neta. Ele é super carinhoso e atencioso comigo. Até se preocupa com minha exposição no carnaval. Sempre fala: “Minha filha, você quer ser advogada e tal”. Mas ele nunca interferiu nas minhas decisões.
Ela também lamenta o peso do sobrenome.
— Infelizmente, as pessoas me vinculam a ele e eu acabo sofrendo por algo que não tem nada a ver comigo. Acho que o maior sonho da minha vida é esse: que as pessoas não me associem ao meu avô — concluiu.
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