
Em 1982, o cineasta Walter Lima Jr. estava empenhado na busca de uma protagonista para o filme “Inocência”, baseado no clássico homônimo lançado no fim do século XIX pelo escritor Visconde de Taunay. Um belo dia, o diretor caminhava pela Rua Cosme Velho, no Rio, onde morava, quando o ator Claudio Marzo passou conduzindo um jipe e parou para falar com ele. Lima Jr., então, bateu os olhos em uma menina sentada no banco de trás do automóvel, ao lado de outras pessoas, e percebeu que tinha encontrado o rosto que vinha procurando para seu longa-metragem. Fernanda Torres.
Àquela altura, a filha dos atores Fernando Torres e Fernanda Montenegro já não era mais uma caloura. Além de ter crescido na coxia de diferentes palcos acompanhando os pais, Fernandinha tinha entrado para a Escola de Teatro Tablado aos 13 anos, em 1978. Sua estreia em um espetáculo aconteceu no mesmo ano, com a peça “Tango argentino”, de Maria Clara Machado. Na TV, tinha integrado o elenco de duas novelas da Globo, “Baila comigo” e “Brilhante”. Mas, aos 16 anos, Fernandinha ainda não havia atuado no cinema. Foi então que ela aceitou o convite de Lima Jr. para ingressar na sétima arte.
“Acho que foi a experiência mais rica que já tive, com as pessoas mais ricas que já pude encontrar”, disse a atriz na sua primeira grande entrevista ao Jornal O GLOBO, em 1983, quando o filme já estava nas salas de cinema do país, com bom desempenho de bilheteria e angariando elogios da crítica. “O Walter sabe exatamente o que quer de você e está sempre disposto a ajudar. Não se fez esse filme pensando em nada além do prazer de fazer cinema. Cada um colocou um pedaço importante seu no longa, eu me sinto meio dona daquela parte da Floresta da Tijuca, onde ele foi rodado”.
Em “Inocência”, Fernanda vive a filha de um homem autoritário que estava “prometida” para se casar com um fazendeiro rico, mas é acometida pela malária e se apaixona perdidamente pelo médico que a salva, interpretado por Édson Celulari, também no início de sua carreira. A ficção, adaptada do livro de Taunay lançado em 1887, rompia de certa forma com o cenário do cinema nacional e seus filmes cheios de cenas de sexo, no início dos anos 1980. Segundo dizia o próprio Lima Jr., “Inocência” é uma história de amor com identidade brasileira, “sem sequer um beijo na boca entre o par romântico”.
“Inocência praticamente não fala. O próprio Taunay, autor do livro, não permite que ela fale”, analisou Fernanda. “É um personagem que só vai crescer, explodir, falar, através de seu amor, Cirino. Quando Inocência desabrocha, tem coragem de enfrentar o pai. É uma história que vale para todos os tempos”.
Hoje vencedora de um Globo de Ouro de melhor atriz e indicada ao Oscar na mesma categoria, pelo filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, Fernanda se tornou um fenômeno nas redes sociais. Mas, já naquele início dos anos 1980, cada passo seu, fosse nos palcos, na TV ou na tela de cinema, já era acompanhado de perto pela imprensa. Seus pais, afinal, eram atores experientes e famosos. Por isso, a jovem atriz, ao dar entrevistas, ouvia muitas perguntas sobre que tipo de incentivo para seguir a carreira no teatro havia dentro de casa. Ela tinha a resposta na ponta da língua.
“Aqui em casa nunca teve esse tipo de incentivo. Eu estava meio desenturmada no colégio, o Tablado era aqui do lado da minha casa (no Jardim Botânico), resolvi entrar e achei incrível, senti o maior prazer de estar no palco”, disse Fernanda, sem poder imaginar que, mais de 40 anos depois, seria uma das atrizes favoritas para ganhar um Oscar. “Achei um grupo e uma profissão. Mas não foi uma escolha baseada na carreira dos meus pais, com o objetivo de seguir os passos deles. Eu apenas queria me exercitar de outra maneira que não fosse no colégio”, garantiu ela.
Em 1979, a atriz estreou na televisão no programa “Nossa Cidade”, da TVE, dirigido por Sérgio Britto. Ainda no mesmo ano, apareceu pela primeira vez na Globo, em um episódio da série “Aplauso”, sob direção de Domingos Oliveira. Em seguida, atuou nas novelas “Baila comigo”, de Manoel Carlos, e “Brilhante”, de Gilberto Braga. Mesmo com tudo isso, na hora de escolher uma faculdade, fez vestibular para Escultura (ela amava artesanato e confeccionava peças de cerâmica, marionetes etc). Mas não chegou a iniciar o curso porque, logo logo, entendeu que queria mesmo seguir no teatro.
“O ator deve saber fazer um personagem, envolver-se com ele. Quero ser camaleoa, não quero ser o Dorian Gray, parecer uma imagem, ser sempre jovem, bonita, simpática, ou ser sempre má, perversa. A coisa mais poética da profissão de ator é justamente a capacidade de ser 20 ou até milhões”, analisou Fernanda, na entrevista em 1983. “Tenho mais experiência com TV. Mas a TV perde para o cinema e o teatro em encantamento, você desliga quando quer. Você que toma conta. Não gosto tanto de ver TV porque não gosto das coisas de que tomo conta. O que eu mais gosto de assistir é ao cinema”.
Na véspera daquela conversa, ela tinha assinado contrato para outra novela da Globo. No dia seguinte, iria a São Paulo para o lançamento de “Inocência”. Em uma semana, começaria a ensaiar a peça “Rei Lear”. O quarto de Fernanda era um reflexo dessa menina-mulher-atriz. Nas prateleiras, livros sobre teatro, bonecos de ventríloquo e peças de cerâmica. Nas paredes, máscaras feitas por ela, retratos de amigos e de Clark Gable com Marylin Monroe. Tinha também TV, aparelho de som, um sofá vermelho, uma escrivaninha e uma máquina de costura que ela usava para fazer as roupas das marionetes.
“Às vezes, tenho medo, penso se tudo não está acontecendo cedo demais. Se alguma coisa não está dançando em mim, a própria vida pessoal. Você tem 17 anos, mas também em certos momentos tem 10. Que lado meu está ficando pra trás e faz falta? Eu não deveria estar numa faculdade”, refletiu Fernandinha. “Mas nunca abdicaria do trabalho. Tenho amigos do tempo do Tablado, só que convivo pouco com eles. Acaba sendo algo meio solitário. Não tenho tempo para arrancar meus sisos (risos). Mas não sou nenhuma garota problema, estou superfeliz com as pessoas que curto e meu trabalho”.
As palavras fluíam com alegria e generosidade. Cada opinião era elaborada e cheia de contexto. “Sou virginiana, é um karma que me persegue, esse signo. Ele é racional, crítico, todo organizado, terra, terra, terra. Mas, felizmente, também tenho muito de escorpião, meu ascendente, adoro signos fortes”, disse a atriz, que dois anos mais tarde receberia o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado, pelo filme “A marvada carne”, de André Klotzel, e, em 1986, venceria a Palma de Ouro de melhor atriz no Festival de Cannes, na França, por sua atuação em “Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor.
A conversa antes de Fernanda Montenegro bater na porta do quarto para avisar que o jantar estava na mesa. A atriz foi se sentar com a mãe, o pai e o irmão, o então estudante de Comunicação Cláudio Torres, hoje um cineasta premiado, sócio da produtora Conspiração Filmes. Uma família brasileira.
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