
“Eu digo que a história lá na sua origem já era terrível de sobrevivência nela e piorou. Infelizmente, piorou. Temos que ter consciência que piorou e tentar sair disso”. A declaração da atriz Fernanda Montenegro em entrevista quarta-feira durante a pré-estreia do filme “Vitória”, baseado numa história real revelada pelo EXTRA em 2005, reflete a realidade atual da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, na Zona Sul do Rio. Há 20 anos, a aposentada Joana Zeferino da Paz, que ficou conhecida como Dona Vitória para não poder ter sua identidade revelada por questão de segurança, usou uma filmadora para registrar, do apartamento onde morava, a movimentação de traficantes, usuários de drogas e policiais corruptos na comunidade.
Publicada pelo EXTRA em reportagens do jornalista Fábio Gusmão em agosto de 2005, a denúncia da idosa levou à instauração de um inquérito que identificou mais de 30 criminosos flagrados nos vídeos feitos por ela, que morreu de causas naturais em 2023, aos 97 anos, na Bahia.
Se estivesse viva e ainda morasse no apartamento de onde teve que sair ao entrar no programa de proteção a testemunhas, a aposentada alagoana poderia documentar hoje da janela que o crime se intensificou no lugar. O tráfico passou a adotar práticas de milícia, explorando negócios irregulares, entre eles a venda de sinais clandestinos de internet e de TV a cabo e a cobrança de taxas. Nesse mesmo período, o número de moradores e de casas duplicou, e as construções se verticalizaram, atingindo três e até mais andares.
Como na época das filmagens, a facção criminosa Comando Vermelho (CV) domina territórios na Ladeira dos Tabajaras. Mas, agora, segundo a polícia, além da venda de drogas sintéticas no morro e no asfalto, o CV impõe taxas, por exemplo, a quem explora o transporte feito por Kombis e motos, e exige percentuais sobre o monopólio da venda de botijões de gás.
Um dos integrantes da facção, segundo processos que tramitam na Justiça, seria Thiago Veras Matos, o Carreirinha, apontado como gerente geral do tráfico na comunidade. Em nome dele, há três mandados de prisão. Ele seria homem de confiança de Ronaldo Pinto Lima e Silva, o Ronaldinho Tabajara, e é citado em pelo menos dez processos, parte deles por tráfico e homicídio.
Ronaldinho, mesmo preso, em 2005, época em que o caso de Dona Vitória veio à tona, comandava o tráfico no Tabajaras, conforme relatórios de investigação. Procurada, a defesa de Thiago Veras Matos alegou que ele não faz mais parte do tráfico. O EXTRA não conseguiu contato com a defesa de Ronaldinho Tabajara.
Considerada estratégica pelo CV, a Ladeira dos Tabajaras e a comunidade colada a ela, o Morro dos Cabritos, ficam próximas ao Pavão-Pavãozinho, entre Copacabana e Ipanema. Controladas pelo mesmo grupo criminoso, essas comunidades servem como base e ponto de partida para tentativas de invasão ao Chapéu Mangueira, no Leme, única favela na Zona Sul onde o Terceiro Comando Puro atua.
O preço de morar lá
Hoje, comprar imóvel na comunidade, conta um morador, geralmente “é na planta”, ou seja, antes de construir:
— Na beira da rua, uma casa “na planta” custa de R$ 80 mil a R$ 100 mil. No alto, é entre R$ 50 mil e R$ 60 mil.
O número de creches públicas também é considerado pequeno para atender à quantidade de crianças. Há uma municipal, a Tia Sônia Crispiano, e uma conveniada, a Cantinho da Natureza. Ambas ficam na Rua Euclides da Cunha, no Cabritos, embora atendam também ao Tabajaras.
A única farmácia do complexo fica no lado dos Cabritos. O lugar tem uma igreja católica — há dois anos, uma capela virou a Paróquia São Benedito, na Rua Euclides da Cunha — e pelo menos seis templos evangélicos, todos no Cabritos. Já quem quiser atendimento médico tem que descer até a Rua Siqueira Campos, onde funcionam o Centro Municipal João Barros Barreto e uma UPA.
— Para muita coisa temos que ir até o asfalto, o que não é barato. O mototáxi é de R$ 3 para descer e R$ 5 para subir.
Sobre as Kombis, outro morador reclama que não aceitam Riocard:
— Os patrões querem dar o vale e não o dinheiro. O dinheiro da passagem acaba saindo do nosso bolso.
Além da violência, o abismo social
Os problemas do Tabajaras, ressaltam os moradores, vão além do crime. Quem vive na favela lamenta que, 20 anos depois das denúncias feitas por Dona Vitória, o morro ainda viva um profundo abismo social.
— Uma grande violência que o morro continua sofrendo é a social. A ajuda pública é quase zero — reclama um morador. — Nossos jovens não têm o que fazer. E as mães, para levar os filhos para a escola, ou descem a pé ou dependem de Kombis. Não há uma única escola pública no morro, e os projetos sociais são da iniciativa privada.
Números do Censo mostram que a população da Ladeira, que era de 1.051 moradores em 2000, foi para 2.154 em 2022. Já o número de casas subiu de 424 para 902. Os dados são considerados subdimensionados por quem vive no local.
— A Ladeira dos Tabajaras, que começa na Siqueira Campos, em Copacabana, e vai até a Real Grandeza, em Botafogo, tem milhares de casas e uns 40 becos — afirma um morador. — Mas não podemos esquecer que se trata de um complexo, a Ladeira e o Morro dos Cabritos. As pessoas acabam chamando tudo de Tabajaras e circulam de uma para outra.
Uma ex-moradora diz que o poder público precisa olhar mais para o morro:
— Posso assegurar que 99,9% dos que vivem no Tabajaras são pessoas do bem.
Atualmente, a média dos prédios no Tabajaras e nos Cabritos é de três andares. Contudo, alguns chegam a seis pavimentos. O aluguel de uma quitinete, de 20 metros quadrados, está em torno de R$ 1 mil. Um imóvel de dois quartos é alugado por até R$ 1.500. Mas os preços dependem de o imóvel estar menos ou mais próximo das ruas onde chegam Kombis e mototáxis. E muitas vezes é preciso subir escadarias para chegar em casa.
As respostas da prefeitura, da Polícia Civil e da PM
A Secretaria de Ordem Pública afirma que não recebeu denúncia e não identificou a recusa nos chamados “cabritinhos” do vale-transporte. A prefeitura, por sua vez, garante que a área (Tabajaras e Cabritos) “é coberta por equipamentos, ações e políticas públicas de saúde, educação, esportes, meio ambiente, limpeza urbana, entre outros”.
O município afirma ainda que no centro da Siqueira Campos a cobertura de saúde da família é de 98,93% do território do Tabajaras, e 100% no Cabritos. Na educação, afirma que são três unidades para atender às duas comunidades: as duas creches, no Cabritos, e a Escola municipal Alencastro Guimarães, na Rua Toneleros, fora da comunidade.
Sobre os crimes citados, a Polícia Civil informou que investiga todas as ações e que existem trabalhos de apuração em andamento, incluindo outros locais da Zona Sul. A Polícia Militar informou que a modalidade de extorsão e exploração de serviços de forma clandestina são condutas praticadas de maneira velada e, por isso, a participação da população é determinante no combate a essas ações criminosas. Acrescentou que a corporação atua ostensivamente na localidade com policiais da Unidade de Polícia Pacificadora do Tabajaras e do 19° BPM (Copacabana) tanto no interior da comunidade quanto em seus acessos.
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